Comunidade indígena de Porto Real do Colégio recebeu imóveis em novembro
Após receber denúncia, a Fiscalização Preventiva e Integrada da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (FPI do São Francisco), por meio da equipe de Comunidades Tradicionais, constatou graves problemas na estrutura de casas entregues aos índios Kariris-Xocós pelo programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal. Os indígenas receberam os imóveis em novembro de 2017.
As unidades apresentavam rachaduras nas paredes e calçadas, irregularidades nas instalações elétricas, material de construção de baixa qualidade, afundamento do piso, cupim na madeira e portas sem fechaduras. Para simular um suspiro da fossa, colocou-se apenas um pedaço de cano preso a um prego numa das casas, propagando no local o mau-cheiro decorrente do uso dos recursos sanitários manuais. As residências não têm numeração, nem rede de abastecimento de água.
O cacique dos Kariris-Xocós, José Cícero Queiroz, mostrou aos agentes públicos da FPI do São Francisco uma das residências em pior estado. Nela, o piso apresentava inclinação, e a rachadura da parede permitia que uma mão a atravessasse.
“Quando a comunidade recebeu as casas, não havia rachaduras. Pouco depois de entrarmos nas casas, começamos a notar os problemas, que surgiram em alguns meses. A gente precisa das casas porque não tem para onde ir. É um grande falta de respeito conosco e uma irresponsabilidade do governo”, disse a liderança.
Coube a um banco federal entregar as 200 unidades do Conjunto Kariri III, depois da construtora contratada demorar dois anos para concluir as obras com recursos da União. Os moradores reclamam da cobrança das parcelas do financiamento, que retroagem a 2016.
O atraso na entrega do Conjunto Kariri III e de outros residenciais populares foi alvo de um inquérito civil público n° 177.2015-52 do Ministério Público Federal em Alagoas (MPF/AL). Agora o órgão ministerial vai apurar também o porquê das casas terem sido entregues em tal estado.
“Ao que consta, a Caixa Econômica Federal é responsável pelo financiamento e por atestar a higidez das casas para poder recebê-las. Precisamos agora apurar com bastante rigor quem foram os fiscais do banco que realizaram o atesto e o porquê desse recebimento, já que as casas apresentam graves problemas estruturais apenas cinco meses depois de serem entregues”, disse o procurador da República Bruno Lamenha.
O membro do MPF/AL entende que o banco deve acionar a construtora para ela reparar as casas. “A construtora Cooperativa Mixta da Agricultura também tem responsabilidade porque recebeu para entregar algo que ela efetivamente não entregou”, completou o representante do órgão ministerial, que a depender da investigação, pode adotar medidas nas esferas cível e penal.
A FPI do São Francisco constatou ainda problemas nas obras de outros residenciais realizadas por construtoras diferentes e na prestação de serviços públicos essenciais à comunidade, como abastecimento de água, saúde, transporte e estrutura escolar a fim de garantir educação indígena para os Kariris-Xocós.
Desmatamento
A Equipe Flora também visitou o território indígena que se estende pelos Municípios de Porto Real do Colégio e São Brás. Na fiscalização, agentes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) lavraram dois autos de infração em desfavor de um fazendeiro.
O primeiro por descumprir embargos realizados em 2016 de uma área de 260 hectares e outra de dez, sendo esta em área de preservação permanente. Já o segundo foi impedir a regeneração natural da mata nativa, que também levou os fiscais a notificar o atual proprietário para tirar o gado da área.
A supressão vegetal avançou pelo território sagrado dos Kariris-Xocós, o Ouricuri. Segundo o pajé Júlio Queiroz Suira, dos 220 hectares originais do local destinado aos rituais, restaram apenas 100. “Há 400 anos que essa comunidade existe, seguindo valores de respeito, igualdade e humanidade. De 15 em 15 dias, trago a comunidade para passar duas, três noites aqui [no Ouricuri] para doutrinar todos no nosso regime”, disse o líder espiritual.
“O desmatamento próximo ao território sagrado, que é onde eles praticam seus rituais religiosos, tem um peso enorme. Você profana a área. Os índios deixam de fazer os rituais por conta de eles estarem sendo vistos, em decorrência da supressão da mata, além da relação mais do que simbólica que os índios têm com essa mata”, afirmou o antropólogo Ivan Farias.
“Eu diria que os índios Kariris-Xocós, tal como boa parte dos indígenas do Nordeste, se mantém vivos, sobreviventes do longo processo de destruição do território nacional, desde o processo da colonização, por conta do ritual do Ouricuri. Então, se o desmatamento o alcança, a última trincheira de resistência está atingida, e a possibilidade de destruição dessa população é imensa”, completou o coordenador da Equipe de Comunidades Tradicionais.
Além dos órgãos citados, participaram da fiscalização em Porto Real do Colégio representantes do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, Ministério Público Estadual, Batalhão de Policiamento Ambiental, Polícia Rodoviária Federal, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária e Fundação Nacional do Índio.
Proteção constitucional
Segundo a Constituição Federal, é competência do Ministério Público defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas. A Carta Magna também prescreve que o Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
No que se refere às terras indígenas, elas alcançam o território de suas atividades produtivas, imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
Conforme a Constituição Federal, as “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.
Assessoria FPI