Professores relatam dilemas da mudança de salas físicas a virtuais – Notícias Concursos


O movimento de 40 a 50 estudantes numa mesma sala, a firmeza da caneta no papel ao dar o visto no exercício, o pincel atômico deslizando no quadro branco, o olho no olho. Metade da vida do professor de matemática José Correia da Silva, docente há 25 dos 51 anos, foi assim: pautada no palpável. Hoje, tudo é o oposto – e assim como ele, milhares de professores das redes pública e privada precisaram se adaptar a um ambiente completamente virtual, renovando metodologias e redescobrindo formas de transmitir conhecimento.

As instituições de ensino estão oficialmente fechadas desde março, quando foi decretado o isolamento social pelo Governo do Ceará. A princípio, seriam 15 dias até o retorno. Agora, já são dois meses longe, sem previsão de volta. “A maior dificuldade é a inaptidão com os novos recursos. Todos esses anos, a gente teve só aulas expositivas, no quadro, o máximo que fazia era um trabalho em pdf. Mas, em dois ou três meses, tivemos de nos adaptar a um sistema totalmente novo, de aplicativos e plataformas que eu desconhecia”, relata Correia, que leciona em uma instituição privada e outra estadual.

Apesar dos desafios diários de explorar as vias tecnológicas, o cenário tem sido, segundo ele, uma oportunidade de se “reinventar e crescer como profissional”. “São muitos passos até fazer uma aula: tenho que ir pro site, baixar um vídeo, improvisar um estúdio, gravar? Os professores que estão começando agora têm mais facilidade. No meu caso, precisei aprender. Às vezes, meu filho de 13 anos me ajuda. As mídias sociais são importantíssimas, mas essa adaptação repentina, sem uma preparação antes, complica”.

Para a professora Vânia do Nascimento, 48, que ensina História, Artes e Filosofia em escolas de bairros da Regional I, “todo dia tem sido um leão a ser vencido”. “Por conta da demanda de trabalhar em duas escolas, e até por acomodação, pra mim era mais difícil ficar tentando inovar, me capacitar com essas novas ferramentas. Agora, tudo que é novo foi imposto de repente: entrar ao vivo, gravar aulas online, usar o Google Meet. É muito desafiador”, descreve a docente, que dá aulas no modo tradicional há 17 anos – online, há um mês.

Adaptação

“Antes, meu acesso era a provas, e-mails, olhar alguma coisa no Youtube sobre as aulas, pra direcionar links aos alunos. Mas muito superficial, porque as escolas exigem muito o tradicional, o livro, a lousa, a interação presencial. Agora, tenho duas realidades: as aulas gravadas e as ao vivo”, descreve Vânia, que precisou adaptar horários e espaços de casa para as gravações.

O processo de mudanças, como ela avalia, tem sido “renovador”. “Fico ansiosa, apreensiva, mas tudo o que eu consigo, embora que minimamente, me deixa muito satisfeita. Na semana passada, não conseguia nem falar direito. Mas com o tempo, fui melhorando. Se eu não pensar que tenho que melhorar, inovar, me refazer, vou ficar pra trás. E não quero isso, apesar de todo o cansaço”, finaliza.

Além do desafio pessoal e profissional das aulas à distância, a também professora de História Mirian Lima, 55, destaca que a responsabilidade de como o conteúdo chega ao aluno aumenta.

“São jovens que usam muito a tecnologia, mas não em prol do próprio crescimento. Se presencialmente, pra nós, é complicado concentrar a atenção de 40 deles, no computador, é mais ainda. Temos feito o máximo, procurado estratégias pra isso”, afirma.

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Mirian é professora há duas décadas, ensina em duas escolas da rede estadual do Ceará, e define o atual momento como “o mais desafiador até hoje”. A “vontade de fazer e se doar para a formação de alguém” é o que, segundo ela, “revigora” numa rotina ainda mais extenuante. “Sento diante do computador por volta das 8h e geralmente saio pelas 21h. Minha geração era muito distante dessa prática: numa escala de 0 a 10, eu ficaria entre 4 e 5 no uso da tecnologia. Porém, como educadora, me defino como eterna aprendiz. Quando isso tudo passar, não seremos mais os mesmos. A tecnologia vai ser um ponto muito marcante dentro da nossa prática”, projeta a professora Mirian.

A mudança do presencial para o virtual é ainda mais impactante no exercício do professor Alexandre Rocha, 46 – surdo, ele ensina Língua Brasileira de Sinais (Libras) no Centro de Referência em Educação e Atendimento Especializado do Ceará (Creaece) há dez anos. “A Libras é uma língua de espaço visual, em que utilizamos mais as expressões faciais e corporais, interagindo com os demais em sala de aula. (Uma das dificuldades é) ter que lidar com vários grupos de WhatsApp, redobrando atenção, reinventando metodologias, tornando as aulas mais leves possíveis, agora que são por videochamadas”.

Apesar dos desafios de lidar com estudantes de diversas realidades, da Capital e do interior, com distintos níveis de acesso à Internet e à tecnologia, Alexandre aponta o que o impulsiona: “é a empolgação dos alunos, isso me instiga. Ver o interesse por parte dos alunos e que eles estão realmente dispostos a aprender faz com que eu me reinvente cada vez mais nesse momento de pandemia”, sentencia o professor Alexandre, cujo relato para esta reportagem foi traduzido pelo intérprete Neto Oliveira, também funcionário do Creaece.

Cuidados

Se por um lado as mudanças impostas pela pandemia favorecem aprendizados, por outro, geram sobrecarga e ansiedade em profissionais da educação. É o que apontam os resultados preliminares de uma pesquisa do Laboratório de Estudos em Política, Educação e Cidade (Lepec), da Universidade Federal do Ceará (UFC), que já obteve 5.800 respostas nacionalmente, 950 delas de professores do Ceará. Os dados apontam que apenas 10% deles já faziam vídeos para plataformas online, por exemplo – e que sete em cada dez apontaram ansiedade e esgotamento como os sentimentos mais presentes, hoje.

Além disso, cerca de 33% dos entrevistados afirmaram trabalhar de 8h a mais de 12 horas diárias, e quase um terço se envolve em atividades escolares em mais de cinco dias por semana. Para a pesquisadora Danyelle Gonçalves, professora de Ciências Sociais da UFC, a sobrecarga e as preocupações são ainda maiores para profissionais acima de 40 anos.

“Eles são imigrantes digitais, tiveram que aprender a lidar com diferentes tecnologias e plataformas que não faziam parte do cotidiano. As novas gerações já são alfabetizadas nisso”, pontua.

Danyelle alerta ainda que, diante de tudo isso, é preciso atenção à saúde mental de quem ensina e de quem aprende. “Uma coisa é uma aula física, com 50 ou 110 minutos, outra coisa são 55 minutos na frente do computador. O processo educacional precisa ser agradável e fazer sentido para todos os atores, tanto alunos como professores. Depois dessa pandemia, muito provavelmente as práticas não vão retornar exatamente como eram antes”, conclui a pesquisadora.

Fonte: Notícias Concursos