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O Rio São Francisco está perdendo a batalha contra o mar. Por causa da estiagem dos últimos anos, a vazão após a barragem de Xingó vem sendo paulatinamente reduzida desde o início de 2013.
Sem força, o Velho Chico é invadido pela água salgada do Atlântico, num fenômeno conhecido como cunha salina, que provoca alterações no ecossistema e afeta o dia a dia de comunidades ribeirinhas.
Relatos apontam a presença de crustáceos em Penedo, no estado de Alagoas, a cerca de 40 quilômetros da foz. Para a população local, a falta d’água e o sumiço dos peixes são os principais problemas.
— O que mais impressiona é ver o ribeirinho, que mora na beira do São Francisco, não poder beber água do rio por causa do sal — diz a bióloga Neuma Rubia, pesquisadora da Universidade Federal de Sergipe.
O avanço da cunha salina e seus impactos socioambientais será um dos temas do I Simpósio da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, realizado entre hoje e quinta-feira em Juazeiro, na Bahia.
A situação é particularmente grave em Piaçabuçu, município alagoano com cerca de 18 mil habitantes, a 13 quilômetros da foz. Todos os dias, a captação de água é interrompida durante a maré alta, quando as águas do mar invadem o rio com mais força. São duas interrupções diárias, de duas horas e meia cada.
POPULAÇÃO COM HIPERTENSÃO E DOR DE CABEÇA
Segundo Antelmo Leão, assessor de comunicação da prefeitura de Piaçabuçu, a situação é de calamidade. Por causa do aumento do sal na água, o posto de saúde do município registra aumento de pacientes com hipertensão arterial. — Na escola da minha filha, as crianças estavam ficando com dor de cabeça por causa da água — conta Leão. — Quem pode compra água mineral.
De acordo com a Companhia de Saneamento de Alagoas (Casal), a concentração de cloreto na água da região variava entre 10 e 20 miligramas por litro, mas hoje chega a 1,8 grama por litro durante a maré alta. Por isso a captação é interrompida, já que a recomendação para potabilidade é de até 250 miligramas. Francisco Beltrão, vice presidente operacional da concessionária, explica que a solução seria a dessalinização, mas o procedimento é muito caro.
Para minimizar os impactos, a empresa planeja aumentar a capacidade da estação de tratamento e construir caixas d’água para armazenamento.
A colônia de pescadores de Piaçabuçu, com 3,4 mil cadastrados, também sofre com a situação. Peixes típicos de água doce, como piabas, dourados e surubins, foram substituídos por espécies que suportam a água salobra, como robalos, tainhas e carapebas.
Pode parecer história de pescador, mas Antônio Amorim, presidente da colônia, conta que até tubarões já foram capturados nas agora salgadas águas do São Francisco.
— Peixe nascido no São Francisco, a gente não pega mais — lamenta o pescador.
A recomendação é que a vazão liberada pela Usina Hidrelétrica Xingó seja de ao menos 1.300 metros cúbicos por segundo (m³/s), mas por causa da estiagem, ela foi reduzida pela primeira vez em abril de 2013, para 1.100 m³/s.
De lá para cá aconteceram reduções gradativas e, desde janeiro, o volume liberado é de 800 m³/s. Segundo Oliveira, relatos históricos indicam que, no passado, navios coletavam água doce a três quilômetros da boca do rio, mar adentro. Agora, a água salgada vai, pelo menos, até Piaçabuçu.
Um estudo do Ministério da Integração Nacional, de 2004, sobre a redução da vazão para 1.100 m³/s, já alertava sobre o avanço da cunha salina por 7,9 quilômetros dentro do rio.
Segundo Maciel Oliveira, secretário do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, há priorização do setor elétrico em detrimento das populações ribeirinhas e do ecossistema.
— Nós reconhecemos a importância estratégica da produção energética da bacia, mas o São Francisco não pode ser visto apenas como um canal para gerar energia — critica Oliveira. A Agência Nacional de Águas (ANA), responsável pelo gerenciamento das barragens, rebate a acusação.
O superintendente adjunto de Regulação da agência, Patrick Thadeu Thomas, afirma que a restrição foi imposta para garantir o reservatório de Sobradinho, que alimenta as hidrelétricas do Médio São Francisco, mas também abastece parte da população dos estados da Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas.
— Em novembro do ano passado, o reservatório estava com 1% acima do nível morto. Sem a redução da vazão, hoje ele estaria seco — diz Thomas. — Existe um dilema entre liberar vazões maiores, para enfrentar a cunha salina, e reduzir a vazão para manter os reservatórios.