Após denúncia de tutores, veterinários responsáveis foram indiciados por estelionato e maus-trautos. Defesa nega denúncias.
“Ali não é uma clínica, ali é um matadouro”. “Não indico nem para meu inimigo ir lá”. As falas, de revolta e tristeza, são de tutores de cachorros que morreram ou foram maltratados no Hospital Veterinário do Trabalhador (HVT), em Maceió.
Um protesto em frente ao HVT, em maio, chamou atenção das autoridades. Ao passo que a investigação avançava, os veterinários responsáveis foram indiciados por estelionato e maus-tratos e a justiça determinou prisão preventiva domiciliar deles, com uso de tornozeleira eletrônica. Eles negam as acusações (leia o que diz a defesa ao final do texto).
Uma das pessoas que acusam o hospital é Ronald Mickael, que precisou internar o Lock, um husky siberiano de apenas 6 meses, com a pata quebrada. Em menos de um mês e duas cirurgias depois, o cão faleceu.
“Assim que eu cheguei lá, disse que o meu cachorro tinha quebrado a patinha e levei ele lá pra dentro. Assim que eu cheguei lá, o veterinário não olhou direito, não analisou, só fez pegar na pata do cachorro e saiu. Ele não disse que o cachorro tinha quebrado o que quer que seja. Ele saiu e já veio o recepcionista com a papelada dos valores, na faixa de R$ 2,9 mil”, relata Ronald.
O filho de Ronald, de apenas 5 anos, também sofre a perda do amiguinho. “Está lá no céu. É uma estrela”.
Lock, um Husky Siberiano de 6 meses, faleceu após ficar pouco mais de uma semana internado na clínica veterinária em Maceió — Foto: Ronald Mickael/Arquivo pessoal
A morte do Lock não foi um caso isolado. O grande número de mortes e de animais que deixaram o HVT com sequelas guiaram as investigações. Os casos tinham em comum os relatos dos tutores de que tinham poucas informações sobre o que acontecia e também a suspeita de maus-tratos.
A advogada da Comissão do Bem-estar Animal da Ordem dos Advogados do Brasil seccional Alagoas (OAB-AL), Rosana Jambo, visitou o HVT pra conferir as denúncias e encontrou o cão Arthur, que era mantido acorrentado em um porão, cercado por fezes. A advogada afirma que o cão era mantido exclusivamente para ser doador de sangue.
“É crueldade o animal ter sido usado somente para isso, para esse tipo de procedimento. Além de todos os fatores que eu já falei, que é justamente a questão de estar em um local insalubre, estar acorrentado sem qualquer tipo de liberdade, vivendo exclusivamente para transfusão”, afirma Rosana.
Mas não foi o único caso flagrado pela integrante da comissão da OAB. “Visitei a cadela chamada Meg. Ela estava dentro de uma baia, acorrentada. Ela estava imersa em fezes, urina, estava lá deitada. As unhas enormes. Isso identifica diretamente que o animal não passeia. Eles não são cuidados, absolutamente. Eu classifico como um dos piores casos de maus-tratos ocorridos em Alagoas”.
A investigação policial ouviu 27 vítimas do mesmo hospital veterinário. Mas esse número pode ser bem maior, porque a polícia descobriu que, de tempos em tempos, os veterinários mudavam de endereço e abriam novas clínicas.
“Isso por que ele se queimava no mercado, se queimava nas redondezas e, consequentemente, tinha que abrir com outro nome em um novo endereço”, afirma explica delegado Leonam Pinheiro, que investiga o caso.
Helder Lima de Oliveira e Jairo Miranda dos Santos são os veterinários responsáveis pelo HVT, indiciados após a investigação policial. Segundo o delegado responsável, eles tinham apenas o objetivo de ganhar dinheiro.
“A intenção do proprietário do Hospital Veterinário do Trabalhador, bem como a de seu sócio Hélder, era a de obter lucro. Ainda que isso custasse a integridade física ou, pasmem, a vida dos animais”, afirma o delegado Leonam.
Um funcionário que trabalhou no HVT confirma o que diz o delegado. “Eles não estão nem aí se o animal vai sobreviver, não. O que eles querem é ganhar com internamento”.
Tutores de cães e gatos fizeram protesto, em maio, em frente ao Hospital Veterinário do Trabalhador (HVT), em Maceió — Foto: Arquivo pessoal
Apolo foi outro cachorro que passou por uma cirurgia no HVT. A tutora dele, Mônica, gastou quase R$ 4 mil. Mas quando levou Apolo para casa, descobriu que ele tinha pegado uma infecção no hospital.
“Foi quando falaram ‘ele tem que ficar internado novamente’. Eu digo ‘não tenho condições, eu sou costureira. Eu estou há um ano endividada’. Nesse momento, eu percebi que não era para tratar o cão, para curar”, lembra Mônica.
Com a ajuda de um amigo veterinário, ela conseguiu tratar o cão em casa. “Quando eu mostrei todos os medicamentos, ele fez ‘por incrível que pareça, você salvou seu cão”.
Mas Apolo ficou com sequelas graves e teve que passar por mais duas cirurgias, uma para correção da anterior e uma nova que foi feita como deveria ter a primeira cirurgia.
A polícia descobriu que, além das longas internações para ganhar com diárias, tinham casos der animais submetidos a cirurgias desnecessárias.
“E o pior de tudo, era sempre o modus operandi por ele utilizado, que era dar diagnóstico que não existia, com a intenção de obter daquela vítima um valor que seria gasto com o animal sem necessidade, a partir do desespero que ela tinha daquele fato”, diz o delegado Leonam.
Foi isso que aconteceu com a cadelinha Rubi, que chegou com a barriga inchada no HVT. Uma hora depois, a tutora dela recebeu um vídeo da cadelinha sendo submetida a uma cirurgia.
“Não explicou [o motivo da cirurgia]. Ninguém sabe se ela precisava de uma cirurgia, e acredito que ele não anestesiou esta cachorrinha. Eu acredito que nenhum animal que esteja anestesiado fica se mexendo”, conta a tutora de Rubi, que não sobreviveu.
Ela lembra ainda que foi ao HVT pedir satisfação sobre o que tinha acontecido. “No dia em que eu estive lá na clínica tomando satisfação, ele me ameaçou. Disse que eu não sabia com quem eu estava mexendo”.
A denúncia foi feita ao Conselho Regional de Medicina Veterinária (CRMV), que deixou claro que aquela não era a primeira denúncia sobre o HVT.
“Nós, como conselho, precisamos avaliar esses fatos que chegaram até nós, para daí depois que fizer a instalação do processo ético, e passar todo o trâmite, tomar uma decisão, se aquele profissional ele é culpado ou não, e se culpado, que pena cabe a ele. Leva no máximo até 5 anos. Então, não é rápido, ele demora”, justifica Annelise Martins, presidente do CRMV.
Além das sanções penais, os acusados podem sofrer sanções disciplinares que são aplicadas pelo conselho. Elas vão desde advertência, passando pela suspensão até eventualmente a cassação profissional.
Enquanto isso não acontece, o processo criminal avança. Além da prisão preventiva domiciliar, os veterinários responsáveis foram proibidos de exercer a prática veterinária e o HVT foi interditado pelo Instituto do Meio Ambiente (IMA). Os animais que estavam lá foram encaminhados para outras clínicas.
A reportagem do Fantástico tentou falar com o proprietário da clínica indo até a casa dele, mas não foi atendida.
Por meio de nota, a defesa dos veterinários disse que a denúncia de estelionato é “infundada, tendo em vista que todos os clientes assinam contrato de internamento antecipadamente” e que “em relação aos casos de Lock, Rubi e Apolo, os fatos serão esclarecidos judicialmente”, mas que “todos receberam tratamento conforme a literatura médica” e que o “único interesse sempre foi a recuperação e o bem estar de cada animal”.
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