Em decreto publicado hoje, o presidente Jair Bolsonaro demite os peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), responsáveis por fiscalizar de violações de direitos humanos em penitenciárias. Os novos peritos não terão salário e não poderão ter ligação com ONGs ou universidades.
O decreto 9.831, assinado ontem, ainda determina que a nomeação de novos peritos para o órgão precisará ser chancelada por ato do próprio presidente, e que esses novos membros não irão receber salário. Além disso, o ato de Bolsonaro ainda proíbe que os novos peritos tenham qualquer vinculação a redes e entidades da sociedade civil e a instituições de ensino e pesquisa, dentre outros.
“Fomos pegos de surpresa. É bastante claro que se trata de uma retaliação ao trabalho que a gente vem desenvolvendo”, afirmou à Pública um dos peritos demitidos, Daniel Melo.
Como a Pública havia revelado, desde o início do governo Bolsonaro, os integrantes do Mecanismo vinham denunciando que a ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, trabalhava para impedir a atuação dos peritos. Em fevereiro, integrantes do Mecanismo e do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT) afirmaram que a ministra impediu a vistoria a penitenciárias do Ceará para avaliar denúncias de maus tratos e tortura no sistema prisional cearense.
Segundo o perito, o decreto também torna inviável a atuação dos futuros peritos já que, sem remuneração, dificilmente teriam capacidade de conduzir investigações extensas. “É inviável [o trabalho voluntário]. Para se ter autonomia, fazer visitas, conseguir minimamente organizar um trabalho, você precisa de sustento. O trabalho do perito não pode ser um cargo como o de um conselheiro, que você vai pontualmente a uma reunião e vai embora”, critica.
A denúncia dos peritos em fevereiro gerou uma crise no Ministério dos Direitos Humanos, que criticou o Mecanismo, mas autorizou posteriormente a inspeção nas penitenciárias do Ceará. Em abril, após realizarem as visitas, os peritos divulgaram um extenso relatório que apontou instalações superlotadas, presos com mãos e dedos quebrados e lesões na cabeça afirmando terem sido atingidos por chutes ou golpes de cassetetes, celas alagadas, tomadas por mofo, e falta de medicamentos para detentos com tuberculose e hepatite.
O relatório da inspeção ainda denunciou que presos soropositivos estavam sem acesso ao atendimento médico e impedidos de receber visita de familiares que poderiam trazer os coquetéis contra o HIV. Durante as vistorias, os peritos encontraram uma cela, nos mesmos presídios, ocupadas por detentos ex-policiais e filhos de policiais com colchão, ventilador e mosquiteiro.
A Pública procurou o Ministério dos Direitos Humanos mas ainda não obteve retorno.
Peritos devem denunciar decreto de Bolsonaro ao Ministério Público
“A gente aponta que o Estado brasileiro tem provocado a tortura e violado os direitos das pessoas privadas de liberdade. [O decreto de Bolsonaro] faz lembrar os Atos Institucionais [da Ditadura] porque somos garantidos por Lei Federal e, de repente, por meio de um decreto, somos exonerados”, critica o perito.
De acordo com o perito Daniel Melo, a demissão dos peritos será levada ao Ministério Público Federal (MPF), além de organismos internacionais. No início do ano, a denúncia que Damares havia impedido a visita do Mecanismo às prisões cearenses foi levada à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do MPF, à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Corte Interamericana
Contudo, mesmo após as denúncias, o Ministério de Damares não recompôs o quadro de peritos, já que vários estão com mandato vencido — dos 11 peritos previstos em Lei, o Mecanismo contava apenas com sete até a publicação do decreto, sendo que dois desses ainda aguardavam nomeação.
No último relatório bianual divulgado pelo sistema de proteção contra a tortura, o grupo relatou situações degradantes durante visita a presídios do Complexo do Curado, em Recife (PE). Pavilhões que deveriam abrigar 50 presos possuíam mais de 150 detentos. Havia uma série de espaços insalubres, com vigas expostas, vazamentos, mofos e sem circulação de ar. Em Belém do Pará, o grupo havia apontado superlotação no hospital psiquiátrico do sistema penitenciário. Segundo o relatório, havia 96 leitos para mais de 180 pessoas, além de cinco pessoas que permaneciam internadas apesar de já terem a medida de restrição extinta.
Fonte: Agência Pública